Em 1884, numa carta endereçada ao seu amigo Oliveira Martins, Eça de ­Queiroz escreveu: “Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo um francês – exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada”.

Eça era um cosmopolita e um conhecedor da cozinha do seu tempo, tanto da portuguesa, como da francesa, que descreve em vários dos seus romances. Por isso, esta citação, mesmo tendo em conta o registo irónico da sua escrita, não deixa de ser importante por enunciar certos lugares-comuns do que seria considerado como essencialmente português em finais do século XIX. O sentimento tido como específico dos portugueses – a saudade – e a canção já então representada como nacional – o fado – surgem aqui acompanhadas pelo bacalhau. Para compreendermos o alcance destas considerações, temos de ter em conta que, na época, era usual acreditar-se que as nações eram dotadas de um caráter específico detetável nos comportamentos dos seus membros. É um tempo marcado por um nacionalismo intenso à escala internacional, presente nas medidas de protecionismo económico, que conhecem grande favor face às políticas liberais, nos conflitos pela emancipação nacional e na luta pela conquista de impérios coloniais . O nacionalismo inspira a procura do conhecimento e da revivificação do que se julgava ser o mais antigo e autêntico dessas sociedades – as suas tradições –, o que incluiria a cozinha.

A apologia de uma cozinha portuguesa – que surge também no romance póstumo de Eça A Cidade e as Serras  – inseria-se, assim, na visão do mundo nacionalista então triunfante. E o bacalhau a que o escritor alude seria reconhecido pelos leitores como parte dessa cozinha, pois era, há vários séculos, de consumo generalizado em Portugal. Abundante nas águas mais frias do Atlântico Norte – há outras variedades mas essas não foram consumidas em Portugal e nos outros países europeus –, era curado para suportar, sem se deteriorar, o longo circuito que o trazia daí até aos grandes consumidores situados na Europa do Sul: portugueses, espanhóis, italianos e franceses, compreendendo os dois últimos, principalmente, os habitantes do Sul. Um modo de preservação assente na seca sem salga – stockfish – também terá chegado a ser conhecido em Portugal, onde, em virtude da sua extrema desidratação, que conduzia à dureza, lhe foi dado o nome de “peixe-pau”. Foi, porém, o produto obtido através da salga e da seca, cuja invenção se atribui aos britânicos, que acabou por se firmar em Portugal. Os britânicos não controlavam zonas ricas em sal, ao contrário de Portugal, por exemplo, cujo sal, nomeadamente o de Aveiro, era considerado da melhor qualidade e por eles importado. Em troca, os ingleses protegeriam os navios portugueses que já frequentavam os bancos da Terra Nova no século XVI, associação que viria a soçobrar, como veremos mais à frente.

O consumo de peixe, em Portugal como nas outras sociedades europeias, está associado a motivações de ordem religiosa. O cristianismo impunha, como penitência, jejuns e a abstinência da carne e das gorduras animais numa boa parte do ano, o que tornava obrigatório o recurso ao peixe para escapar a uma alimentação inteiramente vegetal. As zonas costeiras eram abastecidas por peixe fresco, o que não sucedia nas zonas interiores – onde algum ainda chegava às escassas elites –, apesar de se recorrer ao peixe de água doce. Havia que o importar, como sucedia com a sardinha, abundante em toda a costa, mais acessível e transportada salgada, mas que não chegava para as necessidades da procura. Há que ver, também, que o bacalhau, uma vez curado adequadamente, teria uma maior capacidade de conservação. Outros pequenos peixes, como o carapau, seco pelos pescadores, e mesmo outros maiores – como a pescada ou o polvo secos, ou o atum de barrica, oriundo do Algarve – também não tiveram uma difusão comparável à escala do país. O bacalhau tornou-se uma mercadoria importante, muitos séculos antes de a ciência moderna o valorizar como alimento excepcional devido à sua carne branca e firme, quase isenta de gordura, que quando seca é um concentrado de proteínas: perto de 80%. Além disso, há um grande aproveitamento do seu corpo: das cabeças e da língua (em salmoura), dos sames – ou samos, a bexiga natatória – e do fígado, fonte de óleo saudável e de pequenos traumas infantis ligados à sua ingestão compulsiva.

Procede-se neste ensaio a uma genealogia sumária da relação entre o bacalhau e os portugueses, em parte já abordada de modo distinto por diversos autores. Quer isto dizer que esta é analisada retrospetivamente, procurando mostrar como se chegou à situação em que ele aparece como um marcador explícito da identidade portuguesa. Ao proceder deste modo, sentimos que o nosso olhar sobre esta matéria deve muito a dois paradigmas disciplinares: o da historiografia dos Annales, atenta à importância dos fenómenos de ­natureza económica, social, cultural e simbólica que ocorrem na longa duração, a da estrutura, que privilegiaram; o da antropologia da alimentação e da cozinha, um campo de estudos que, sendo antigo, conheceu nas últimas décadas um grande desenvolvimento. Os contributos destas abordagens serão visíveis tanto nas obras que citamos, como nas temáticas que aqui exploramos. Há dois livros, em particular, cuja influência marca genericamente o modo como a alimentação e a cozinha são aqui abordadas. São as obras clássicas de Jack Goody (1982) e de Sidney Mintz (1985), que têm, de resto, grandes afinidades entre si. São textos que combinam a experiência do conhecimento obtido pela observação e inquirição direta com aquele que decorre da pesquisa histórica. Se o primeiro traz para a análise da cozinha a dos sistemas de produção, da estratificação social e dos modos de conhecimento, o segundo mostra, a partir do estudo do açúcar de cana, como a alimentação e a cozinha são parte de processos históricos amplos como o desenvolvimento do capitalismo, o tráfico de escravos e a história do consumo e dos estilos de vida. Em ambos os casos, trata-se sempre de examinar os objetos de estudo no contexto de uma análise mais ampla, como é necessário fazer no estudo da relação entre o bacalhau e os portugueses. A história desta relação é não só de natureza económica, ligada ao desenvolvimento da economia mundial capitalista, em que a pesca e o comércio do bacalhau, um peixe abundantíssimo no Atlântico Norte, desempenharam um papel relevante, mas também religiosa, social, política e cultural.

 Fonte: etnografica.revues.org